A inteligência artificial é, cada vez mais, parte da vida de todos os brasileiros. Com maior ou menor sucesso, tecnologias como chatbots de atendimento ao consumidor ou detectores de fraudes fazem tarefas que, em outros tempos, exigiriam procedimentos lentos e custosos se realizados por humanos. Essa possibilidade de delegar tarefas para máquinas tem impacto nos mais diversos setores da sociedade e, no Direito, a situação não é diferente.
Já há alguns anos, o Brasil vem ganhando destaque como um polo de lawtechs e legaltechs, isto é, empresas que usam a tecnologia para auxiliar as profissões jurídicas. E o ano de 2020 trouxe diversas novidades para a atuação destas empresas. Em primeiro lugar, houve maturação do mercado, tanto pelo surgimento de diversas novas startups como pelo crescimento de empresas já existentes, que já podem ser consideradas scale-ups. Muitas dessas empresas fazem uso de tecnologias de inteligência artificial, o que motivou uma aproximação entre o mercado de tecnologia jurídica e a pesquisa acadêmica. Essa interação entre universidades e lawtechs, além de potencializar desenvolvimento tecnológico pode levar a resultados que transcendem os interesses comerciais e beneficiam a comunidade em geral. Exemplo neste sentido em 2020 foi o Yuki Saúde (https://covid19.yukiplus.com.br/), chatbot que se utiliza de IA para classificar e responder dúvidas formuladas livremente pelo usuário de natureza clínica sobre a Covid-19 ou jurídicas sobre a legislação emergencial durante a pandemia. Ao mesmo tempo, os próprios tribunais também têm desenvolvido tecnologias inteligentes para suas operações, como o sistema Sinapses originado no Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO).
As tecnologias modernas de inteligência artificial jurídica exigem acesso a grandes volumes de informações processuais. Atento a este tema, e também à entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu, em outubro deste ano, atos normativos que inauguram no Poder Judiciário uma política de dados abertos compatível com a privacidade e proteção de dados pessoais, bem como regras para disciplinar e incentivar o uso de inteligência artificial no Judiciário, de modo confiável e seguro.
E no que se refere à confiança nos sistemas de IA, a principal novidade de 2020 foi a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que é aplicável a todo sistema inteligente que trate dados de pessoas naturais. Dentre as diversas regras e princípios desta lei, dois são especialmente relevantes para a inteligência artificial. Primeiro, o artigo 20 da LGPD estabelece o direito de solicitar revisão de decisões automatizadas. Além disso, o artigo 46 da mesma lei estabelece que devem ser tomadas medidas técnicas, dentre outras, para assegurar o tratamento lícito dos dados pessoais (o chamado privacy by design), inclusive no caso da inteligência artificial.
A inteligência artificial é, também, o objeto de quatro projetos de lei que hoje tramitam no Congresso Nacional. Embora três destes projetos (os PL 5051/2019 e 5651/2019, do senador Styvenson Valentim, e o PL 240/2020, do deputado Léo Moraes) apenas estabeleçam princípios gerais para o uso da inteligência artificial, a iniciativa levanta um debate necessário e que deverá ser amadurecido, a exemplo do que ocorre na Europa. A melhor abordagem, trilhada pelo Parlamento Europeu, é no sentido de adoção de obrigações procedimentais, com a prestação de contas pelas empresas e desenvolvedores sobre medidas técnicas e organizacionais adequadas no ciclo de desenvolvimento e emprego dos sistemas de IA. Um marco regulatório da inteligência artificial no Brasil pode minimizar os riscos da inteligência artificial e, ao mesmo tempo, trazer confiança e estimular o investimento para que se produzam os efeitos potencialmente benéficos da tecnologia. Nesse sentido, a evolução dos debates no Congresso Nacional no ano que vem pode ser bastante positiva.
De olho em 2021, é esperada no governo federal a publicação da Estratégia Nacional de Inteligência Artificial, que direcionará políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação. Ao mesmo tempo, o Poder Judiciário deverá continuar o caminho iniciado para implantar efetiva política de dados abertos aos dados de processos judiciais, beneficiando o desenvolvimento da pesquisa acadêmica e do mercado brasileiro de lawtechs. Esse caminho tem o potencial de estimular a integração entre academia e indústria e uma ótima oportunidade para esta interação está na International Conference on Artificial Intelligence and Law-ICAIL2021) (https://icail.lawgorithm.com.br/), principal conferência mundial de pesquisa em inteligência artificial aplicada ao direito. Pela primeira vez em mais de 30 anos de eventos bienais, o ICAIL ocorrerá na América Latina, tendo-se escolhido, como sede, a tradicional Faculdade de Direito da USP, um claro reconhecimento internacional dos avanços da pesquisa e da tecnologia por aqui. Com todos esses avanços em 2020 e perspectivas para 2021, o espírito no final deste ano, apesar de todas as adversidades, não pode ser outro que não o otimismo.
*Juliano Maranhão, professor da Faculdade de Direito da USP e diretor do Lawgorithm; Marco Almada, pesquisador do Lawgorithm
Publicado em Política Estadão